Aparelho auditivo: por que tanta demora em utilizar?
Ele é fundamental para evitar inclusive perdas cognitivas. Mas profissionais ainda enfrentam resistência de quem precisa desse recurso para ouvir bem
Da percepção equivocada de que pequenas falhas na escuta não justificam o uso à dificuldade de adaptação, são variadas as barreiras relacionadas à falta de adesão ao aparelho de amplificação sonora individual (AASI), o nome oficial desses pequenos dispositivos.
“Cada vez mais temos reforçado a importância de promover a reabilitação auditiva o mais cedo possível, então essa resistência ao uso tende a diminuir”, diz, otimista, a fonoaudióloga Laura Franco Chiriboga, doutora em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Até porque as empresas fabricantes de aparelhos têm pensado mais em questões estéticas e tecnológicas, desenvolvendo produtos praticamente invisíveis”, completa.
Mas, afinal, quem precisa usar. E quando?
“Minha recomendação é: percebeu alguma dificuldade, investigue. Pequenas perdas já podem indicar a necessidade do aparelho”, responde Laura. Isso porque as falhas na escuta não estão restritas às células do ouvido. Elas podem gerar danos a todo o processamento sonoro. “Com o passar do tempo, se não houver intervenção para devolver a possibilidade de essa porta de entrada do som funcionar, o cérebro vai se modificando. Aquelas áreas responsáveis por receber e compreender o que se ouve começam a ser usadas para outras funções, tornando cada vez mais difícil entender e conversar. Com isso, a pessoa vai se isolando e gerando outras consequências da perda auditiva”, descreve Laura.
Não à toa, achados de um estudo publicado no periódico científico The Lancet mostraram o elo entre o uso das próteses e a diminuição do risco de demências em idosos. A partir de um banco de dados com informações de saúde de mais de 430 mil pessoas, pesquisadores compararam a evolução ao longo de 12 anos de indivíduos com e sem perda auditiva – e, neste último caso, entre aqueles que usavam AASI com os que não usavam. Segundo a pesquisa, pessoas com a deficiência que aderem aos dispositivos apresentam risco de demência similar às que escutam bem naturalmente. Já no grupo com alguma deficiência que resistia a lançar mão dos aparelhos, a possibilidade do aparecimento de transtornos como Alzheimer foi 42% maior.
Para Christiane Marques do Couto, professora associada da Unicamp, é importante ressaltar que, no contexto da saúde auditiva, embora as atenções costumem se voltar aos idosos, crianças e jovens não estão livres do problema. “Desde questões perinatais que afetam os bebês até queixas de zumbidos e outros desconfortos pelo uso excessivo de fones e exposição a sons altos, há candidatos ao uso de AASI em todas as faixas etárias”, observa. “Deixar a reabilitação para depois, quando já não se ouve quase nada, gera perdas importantes nessa habilidade”, pontua. Quanto antes for feita a intervenção, melhor será o prognóstico.
Receio da dependência e dificuldade de adaptação
Além de relacionar o uso do aparelho à velhice – juntando dois estigmas numa mesma atitude –, a dificuldade de adesão passa pelo medo de virar refém das próteses. “Mas o foco deve ser a qualidade de vida que elas promovem”, argumenta Christiane. “O aparelho modifica e envia para a membrana timpânica o som que o ouvido já não consegue mais captar, e isso ajuda a preservar as vias auditivas, a fazer conexões cerebrais”, justifica.
Uma parcela, porém, apesar de escolher o caminho da reabilitação, se queixa de não alcançar bons resultados com ele. É o que mostra o Censo 2022 sobre o cenário de pessoas com deficiência no Brasil. De acordo com o levantamento, 1,2% da população relata alguma dificuldade para ouvir mesmo usando aparelho.
O modelo do dispositivo, o ajuste ou mesmo o próprio processamento cerebral podem estar por trás dessas frustrações. “Mas hoje os avanços tecnológicos permitem identificar com clareza a situação auditiva caso a caso. O processo, entretanto, exige um certo tempo, não acontece de forma imediata”, pondera Christiane. “O profissional precisa analisar individualmente as necessidades, conhecer os ambientes e a rotina do paciente e incluí-lo na tomada de decisão”, destaca.
Laura Chiriboga concorda e complementa: “O vínculo que se estabelece entre o profissional de saúde e quem busca ajuda, com acolhimento logo na primeira consulta, faz muita diferença. É preciso fornecer todas as ferramentas para que o paciente compreenda que não é só colocar o aparelho e os problemas serão resolvidos. Demanda um tempo de adaptação, de acompanhamento, até o cérebro passar a entender a nova forma de escuta”.
Christiane Couto, que é também diretora da Academia Brasileira de Audiologia, lembra ainda que não basta programar o aparelho. “Tem que considerar as questões da anatomia do indivíduo, checar se a prótese não está causando desconforto físico, se não há dificuldade de manuseio”, exemplifica.
Essas e outras barreiras foram reunidas no e-book elaborado por Laura Chiriboga e Christiane Couto, juntamente com a fonoaudióloga Katia de Almeida, para auxiliar outros profissionais a identificar os principais problemas, apresentando propostas de resoluções. Na publicação, que pode ser acessada gratuitamente aqui, são listadas queixas capazes de levar ao abandono do aparelho, a exemplo de som muito alto ou abafado, microfonia, ecos, chiados e a impressão de que a própria voz está aguda demais.
Que tipo de AASI é mais adequado?
Há um conjunto de critérios que precisam ser levados em conta, dizem as especialistas. A escolha depende do grau da perda auditiva, das expectativas do paciente, se ele tem ou não destreza manual para operar dispositivos de tamanhos mínimos.
De uma maneira geral, são dois tipos básicos: o intra-auricular, que vai dentro do ouvido, e o retroauricular, posicionado atrás, por fora. Para que resulte em ganhos, tem que ser usado todos os dias, o dia inteiro. Por uma questão de conforto, são retirados para dormir e na hora do banho.
Os novos modelos embutem recursos que permitem cancelar a microfonia, reduzir ruídos não prioritários para a comunicação e priorizar o som que vem da pessoa com quem se está conversando. Entre as inovações, há ainda a possibilidade de a prótese ser conectada a smartphone, computador, TV, melhorando a experiência em ligações e nos momentos de lazer.
Por meio de aprendizado de máquina e inteligência artificial, sensores armazenam e fazem análise de movimentos e ambiente acústico, permitindo ajustes mais precisos.
“Todo cidadão com perda auditiva tem direito ao aparelho pelo SUS”, avisa Christiane Couto. De acordo com o documento do Ministério da Saúde, “a Reabilitação Auditiva com o uso de AASI deve contemplar, minimamente, as seguintes etapas: diagnóstico, seleção, adaptação, concessão de AASI e terapia fonoaudiológica”. A porta de entrada para obter o benefício é a Unidade Básica de Saúde.
“É fundamental buscar informação e caminhos para conseguir a intervenção correta, na hora certa, com profissionais capacitados para entender as questões inerentes a diferentes públicos, de crianças a idosos”, arremata Christiane.
Só assim os aparelhos serão incorporados ao dia a dia de quem precisa, sem serem esquecidos em uma gaveta qualquer.
28 de maio de 2024
,Goretti Tenorio
Jornalista pela ECA-USP, desde 2010 escreve sobre saúde para diferentes veículos.