Afinal, leite é inflamatório?
Mitos e informações sem comprovação da ciência podem estimular a exclusão do alimento no dia a dia, com potencial para gerar prejuízos à saúde nas diferentes fases da vida
Afirmações desencontradas e equivocadas sobre o assunto são tão recorrentes que médicos e nutricionistas de duas entidades – a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban) e a Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) – se dedicaram a reunir evidências científicas a fim de reafirmar: o leite de vaca faz parte de um importante grupo alimentar, e sua retirada do cardápio diário pode fazer falta à saúde. “Muitas informações divergentes circulam sobre o leite, especialmente nas redes sociais, gerando dúvidas para consumidores e até mesmo profissionais da saúde”, aponta o documento.
A alegação de que o produto é inflamatório é um dos tópicos que mais despertam discussões naquele que já se convencionou chamar de tribunal da internet. Para a nutricionista Sueli Longo, presidente da Sban, a falta de contextualização e de esclarecimento é uma das causas da “criminalização” do alimento.
“Existe uma situação em que o leite de vaca é contraindicado, que é quando a pessoa tem alergia à sua proteína. Nessa condição, a APVL, o produto gera, sim, reações do sistema imunológico, mas é uma circunstância muito específica, não se aplica à totalidade da população e exige diagnóstico feito por especialista”, explica Sueli Longo.
Outro contexto no qual o leite é capaz de gerar processos inflamatórios é o da intolerância à lactose. Nesse caso, desconfortos como gases e dor de barriga acontecem porque o organismo não produz – ou produz em pouca quantidade – a lactase, enzima responsável pela quebra da lactose, o açúcar dos produtos lácteos. Então ele se acumula no intestino, fermentando e desencadeando mal-estar gastrointestinal.
“A grande questão quando se fala em intolerância à lactose é o autodiagnóstico”, observa a nutricionista. As pessoas percebem sinais que são comuns a outros problemas e decidem cortar o leite. “Há um grupo de carboidratos fermentáveis que geram sintomas similares, caso do feijão, repolho, grão de bico”, exemplifica. É preciso, portanto, investigar adequadamente para ter certeza da origem do problema e adequar a dieta. E, se a intolerância for confirmada, lembra a especialista, o mercado já se adaptou e lançou produtos isentos de lactose para atender a esse grupo.
Para contribuir com argumentos relevantes sobre a ideia de que o leite e seus derivados seriam alimentos inflamatórios, a Abran e a Sban fizeram um levantamento minucioso de estudos sobre o tema. “O que encontramos vai justamente na contramão dessa afirmação. Os trabalhos classificam o produto como anti-inflamatório”, relata Sueli Longo. O leite, aliás, faz parte de dietas consideradas das mais saudáveis, como a mediterrânea, baseada em frutas, verduras e legumes, cereais, nozes, castanhas, azeite de oliva, peixes e… lácteos.
Mas o leite UHT tem menos nutrientes, certo?
“Outro mito”, responde a presidente da Sban. O leite pasteurizado e o UHT seguem definições regulamentadas. O primeiro, seja em saquinho ou garrafa, passa por processo de aquecimento para ser esterilizado e depois precisa ser conservado em geladeira.
O UHT, por sua vez, é submetido a temperaturas altíssimas – a sigla vem do inglês ultra-high-temperature – e na sequência é acondicionado em embalagem asséptica para garantir maior validade do produto.
“Não há alteração da condição nutricional do produto em nenhum desses processos”, diz a especialista. “Assim como não é permitido o acréscimo de aditivos alimentares, com exceção de estabilizante, cuja função é impedir a separação de fases, das partes mais densas e mais líquidas da bebida”, explica.
Daí por que também não faz sentido espalhar que o leite é batizado com formol ou outras substâncias danosas. “Todo o processo de produção é regulamentado pelo Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Tudo é testado, desde o controle de qualidade do produto in natura na fazenda, o transporte, até a chegada à indústria e as etapas de produção ali”, afirma Sueli Longo. “Se acontece qualquer adulteração, é crime, passível de denúncia”, finaliza.
Importante em todas as idades
“Sem embasamento científico, a contraindicação do leite tem reflexos em termos de saúde pública, porque sua ausência no cardápio compromete principalmente o aporte de cálcio, uma vez que o produto é a principal fonte desse mineral”, alerta Sueli Longo. “Isso cria repercussão em todas as fases de vida”.
Na criança, a presença do cálcio do leite é crucial para a formação adequada da matriz óssea, entre outros benefícios. “Começa pelo leite materno. A amamentação deve ser exclusiva para o bebê até o sexto mês e se recomenda que seja mantida até os 2 anos”, lembra a nutricionista. “No período de transição alimentar, o leite de vaca pode ser ofertado a partir de 1 ano, na impossibilidade de continuidade do aleitamento materno”, observa.
“A criança precisa da proteína, do cálcio, das vitaminas e minerais para o crescimento e desenvolvimento saudável”, resume.
Na fase adulta, os níveis apropriados de cálcio devem ser mantidos. “O mineral faz parte das várias reações que acontecem no organismo, e uma delas é a contração muscular”, ressalta Sueli Longo. Se cai a presença de cálcio, o corpo vai buscar esse componente no osso, degradando assim a massa óssea e dando origem à osteopenia e osteoporose.
Para o idoso, o quesito proteico do leite também conta. Como muitas vezes essa população tem dificuldade na mastigação e deglutição, acaba não consumindo carne, com risco de déficit de proteína – e os laticínios ajudam a suprir essa lacuna.
É bem verdade que, numa alimentação diversificada, muitos nutrientes podem ser obtidos de outras fontes, mas, em se tratando de cálcio, o leite é imbatível. “Com um copo de mais ou menos 220 mL se atinge 240 mg do mineral, uma quantidade que equivale a quase 25% da necessidade diária”, pondera Sueli Longo.
Isso sem contar o fator biodisponibilidade, a porcentagem de absorção do nutriente, muito mais alta no leite. “Uma porção de de 85 gramas de espinafre, por exemplo, tem 115 mg de cálcio. Mas quanto disso é absorvido? Precisaria consumir 13 porções para equivaler a um copo de leite”, calcula. Por isso a orientação é consumir sementes e vegetais fontes de cálcio para complementar a necessidade diária do mineral, mas o protagonismo do leite nesse contexto é incontestável.
Não se trata, claro, de fazer apologia ao consumo do produto. Quem não gosta ou não pode ingerir lácteos pode e deve buscar outras fontes dos nutrientes que esse grupo alimentar reúne, inclusive itens fortificados com cálcio.
“O importante é tomar muito cuidado com a exclusão de alimentos de forma aleatória e sem orientação, porque isso pode trazer prejuízos à saúde. Com o leite não é diferente”, arremata Sueli Longo.
27 de agosto de 2024
,Goretti Tenorio
Jornalista pela ECA-USP, desde 2010 escreve sobre saúde para diferentes veículos.