Amiloidose cardíaca: será que é uma doença tão rara assim?
Saiba mais sobre uma condição progressiva e debilitante que tem sido cada vez mais diagnosticada, sobretudo entre os idosos
Se enfermidades consideradas comuns por vezes apresentam manifestações indistintas que dificultam o diagnóstico, não surpreende que investigar e confirmar as chamadas doenças raras seja ainda mais desafiador.
É o caso da amiloidose cardíaca, que, apesar de receber essa classificação, pode não ser tão rara assim, como explica o cardiologista Ibraim Masciarelli Pinto, professor do programa de pós-graduação do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo. “A prevalência é subestimada e vem aumentando, porque a população está envelhecendo e a idade é um fator de risco para seu desenvolvimento”, argumenta. “Essa é uma doença insidiosa, leva tempo para se manifestar e apresenta sintomas que confundem”, acrescenta.
A amiloidose é um conjunto de doenças causadas pela produção anômala de determinadas proteínas que vão se acumulando em diferentes tecidos e órgãos. “Quando essa deposição acontece no coração, temos a amiloidose cardíaca”, explica o especialista.
E qual o problema de a proteína se concentrar nos tecidos? “Ela ocupa os lugares das células que deveriam estar ali, fazendo o trabalho delas, e com isso prejudica o funcionamento dos órgãos”, esclarece Ibraim Pinto.
“Quando começa a infiltração da proteína no coração, há um aumento na espessura do músculo, que costuma ser classificada genericamente como hipertrofia, causando alterações inespecíficas, como aumento de pressão arterial, o que atrasa o diagnóstico”, descreve.
Com o passar do tempo, continua o médico, o coração passa a apresentar algumas dificuldades, uma delas a de relaxar, ou seja, a amiloidose atrapalha a função diastólica do órgão. “Tem início então um quadro de insuficiência cardíaca com contração preservada, ou com fração de ejeção preservada. O relaxamento está comprometido, e a pessoa sente falta de ar. Só que um indivíduo com hipertensão, por exemplo, tende a sentir o mesmo desconforto”, analisa. É possível aparecerem ainda pequenos episódios de angina, dor ou sensação de pressão no peito. “Mas esse sintoma é comum a quem tem cardiomiopatia hipertrófica, mais uma vez confundindo a avaliação”, explica o cardiologista.
De acordo com Ibraim Pinto, o surgimento de outra condição, a estenose aórtica, cujo risco igualmente aumenta com a idade, deve levantar a suspeita de amiloidose – por volta de 20% de quem tem esse estreitamento na válvula aórtica apresenta o acúmulo de proteína no coração.
Como os depósitos podem atingir diferentes tecidos, é raro que aconteça exclusivamente o abalo cardíaco. Por isso é preciso ficar alerta para outros sinais associados. “Sintomas de síndrome do carpo é um deles, assim como danos renais e alterações hepáticas”, afirma Ibraim.
Se a origem é hereditária, o rastreio familiar é obrigatório
Afinal, o que causa o surgimento anormal da proteína? “Em alguns casos, a pessoa herda dos antepassados uma mutação responsável pela produção anormal de proteína”, diz o cardiologista, que é responsável pela área de imagem do Instituto Dante Pazzanese. “Mas é possível haver também a forma selvagem e a primária da doença”, completa.
Entre as dezenas de tipos de proteína capazes de ocasionar a amiloidose, duas são responsáveis por mais de 95% dos casos de depósito no coração: a de cadeia leve (AL), do tipo primário, produzida na medula, e a transtirretina (ATTR), gerada no fígado e que tanto pode ser hereditária quanto selvagem, esta mais relacionada ao envelhecimento.
Quando a doença é diagnosticada, é necessário solicitar um teste genético para fazer a distinção entre a forma selvagem e a hereditária. Se o paciente tem alguma mutação, o rastreio familiar é fundamental, uma vez que os parentes podem ter a alteração sem, contudo, manifestar a doença. “Ter o gene relacionado à amiloidose não é uma sentença de que ela vai se desenvolver, mas essas pessoas devem ser acompanhadas”, orienta Ibraim Pinto. “O seguimento se dá principalmente com a realização de ecocardiogramas periódicos, para verificar se em algum momento aparece aumento da espessura da parede do coração”, destaca. Ao mesmo tempo, devem-se observar outros sinais, como desordens renais, edemas, síndrome do túnel do carpo e alterações do hábito intestinal.
E quem não tem casos na família? “Com o avanço da idade da população, é importante que todas as especialidades médicas saibam que essa doença existe, porque muitas vezes quem vai encaminhar para o cardiologista é o ortopedista, o reumatologista”, pondera Ibraim Pinto. “Tem que desconfiar, por vezes até o eletrocardiograma já mostra alguma alteração sugestiva”, diz.
A eletroforese, para checar a presença de proteínas no sangue e na urina, é importante ferramenta na investigação. De acordo com Ibraim Pinto, que também é médico de imagem do Grupo Fleury, o ecocardiograma e a ressonância magnética são indicados para medir o aumento da espessura da parede do coração. E um exame de medicina nuclear, a cintilografia, ajuda a confirmar se se trata de amiloidose ATTR.
Saber disso o quanto antes faz diferença na evolução da doença. “Até alguns anos atrás, o prognóstico era ruim e a abordagem só aliviava os sintomas”, explica Ibraim Pinto. “Agora existe tratamento específico para ATTR, opções que conseguem estacionar a doença”, diz. São os medicamentos que estabilizam a produção da transtirretina ou interferem no RNA mensageiro e silenciam a expressão dos genes responsáveis pela sua síntese.
“Por enquanto a amiloidose cardíaca não tem cura, mas existem pesquisas voltadas a produtos genéticos capazes de retirar a proteína já depositada, com potencial, portanto, para reverter os danos causados nos órgãos”, arremata o especialista.
24 de março de 2025
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