Março Amarelo: por que precisamos falar mais sobre endometriose?
Ela afeta uma a cada dez brasileiras, e fazer o diagnóstico o quanto antes é crucial para evitar a progressão da doença e seus impactos na qualidade de vida
“Sentir dor não é normal”, salienta a ginecologista e obstetra Márcia Mendonça Carneiro, professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na visão da médica, esse lema da campanha Março Amarelo, de conscientização sobre a endometriose, ajuda a ampliar o conhecimento e favorece a busca pelo diagnóstico e o manejo adequado de uma doença que pode provocar prejuízos por vezes incapacitantes às mulheres – não são incomuns nos consultórios relatos de perda de compromissos sociais, na escola ou no trabalho em razão de suas repercussões. “Eu recebo pacientes que souberam da endometriose pela campanha, leram a respeito do assunto e desconfiaram que ela poderia estar por trás dos problemas que enfrentam”, relata.
Vice-presidente da Comissão Nacional Especializada em Endometriose da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Márcia Carneiro explica como tudo começa: “Quando a mulher menstrua, acontece um refluxo do sangue para dentro da pelve, ocasionando a presença de tecido fora do endométrio, a camada interna do útero”.
As causas para o aparecimento da endometriose não são totalmente conhecidas. “Vários mecanismos contribuem. Questões genéticas, ambientais, inflamatórias, alterações hormonais, particularidades da dieta”, enumera.
O resultado do extravasamento contínuo, a cada ciclo menstrual, pode se instalar nos ovários, na bexiga, no intestino, causando dor e inflamação. “Se fica só na membrana que reveste a pelve, o peritônio, é chamada de endometriose peritoneal”, explica Márcia Carneiro. “A que provoca cistos no ovário é a ovariana. E tem a endometriose profunda, infiltrativa, com mais de 5 milímetros de penetração e que atinge o intestino e a bexiga”, descreve. “É uma doença com comportamentos diferentes, mas é possível encontrar esses três tipos numa mesma mulher”, completa.
A classificação de gravidade depende das áreas acometidas e suas consequências, mas dismenorreia, ou cólica menstrual intensa, dor nas relações sexuais, ao evacuar ou urinar são sinais característicos da endometriose. Isso sem contar a dificuldade de engravidar.
Por que afeta a fertilidade?
“O processo inflamatório por vezes obstrui as trompas”, responde Márcia, que integra também o Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Endometriose. “Mas há outros aspectos a considerar. Por exemplo, o abdômen fica mais inflamado, então vira um ambiente mais hostil para o espermatozoide. O endométrio, que é a raiz da doença, sofre inúmeras alterações com potencial de dificultar a implantação do embrião. Ou, ainda, o óvulo produzido pode ser de pior qualidade. São vários os fatores associados”, esclarece.
A especialista destaca que a presença de endometriose por si só não sela a infertilidade, mas aumenta essa possiblidade. Segundo a Febrasgo, a doença está presente em 30 a 50% dos casos das tentativas frustradas de engravidar.
“É importante fazer uma avaliação individualizada. Considerar a idade, ponto fundamental porque a fertilidade cai após os 35 anos. Tem que checar se as trompas estão obstruídas, se a endometriose afetou os ovários”, orienta Márcia Carneiro. “Assim como se deve avaliar a reserva ovariana, a quantidade e qualidade dos óvulos, uma vez que a doença interfere também nesse quesito”, continua. E, claro, analisar se tem alguma alteração no espermograma do parceiro, lembrando que a investigação da infertilidade deve envolver o casal, não apenas a mulher.
“Quando aparecem alterações no espermograma e a anatomia da pelve da mulher está distorcida pela endometriose grave, a melhor opção para quem quer engravidar é a fertilização in vitro”, analisa.
Diagnosticar o mais cedo possível
Mesmo diante da alta prevalência – as estimativas apontam mais de 7 milhões de brasileiras com endometriose –, a doença ainda demora a ser diagnosticada, aumentando o tempo de sofrimento pela falta de intervenções adequadas.
Diante de desconfortos próprios da doença, a mulher deve procurar ou ser encaminhada a um especialista para uma investigação mais aprofundada.
“Tem que desconfiar. A normalização da dor contribui para atrasar o diagnóstico. Acabei de atender uma paciente que esperou dez anos até saber que tem endometriose”, conta Márcia Carneiro. “A própria mulher pode ser levada a achar que se a mãe, as tias e as avós sempre tiveram cólica na menstruação, isso é normal, vida que segue. Muitas ficam com vergonha de falar o que sentem e com isso inibem a busca por ajuda”, argumenta. “Além disso, 20% de pessoas com endometriose não sentem nada. Só descobrem o problema quando tentam engravidar, não conseguem, e os exames específicos identificam o problema”, diz.
Diante da suspeita, o exame ginecológico deve ser bem direcionado. “O médico tem que estar treinado a identificar, durante o toque, a presença de lesões sugestivas de endometriose e a partir disso pedir ultrassonografia com preparo de intestino e ressonância magnética, que devem ser feitos por pessoas especializadas”, diz.
A gravidez melhora a qualidade de vida? Endometriose tem cura?
Márcia Carneiro explica que os hormônios produzidos na gestação contribuem para deixar a endometriose mais estacionada, mas ela não tem cura. “A gestação produz um perfil hormonal que consegue silenciar a doença, porém as lesões e as eventuais alterações anatômicas permanecem”, afirma.
Da mesma forma, há medicamentos que reduzem o avanço do problema, mas nada voltado, por exemplo, a eliminar os cistos no ovário, se for esse o caso. “O tratamento pode impedir que eles continuem crescendo. Para removê-los, só com cirurgia”, diz.
A operação para retirar os implantes endometriais é minimamente invasiva, feita por videolaparoscopia ou mesmo robótica. Sua indicação depende da área atingida e da extensão, se existe risco de obstrução intestinal ou urinária, se algum cisto apresenta característica duvidosa – embora o risco de câncer nesses casos seja muito pequeno – e se a mulher já passou por diferentes tratamentos sem sucesso.
“O procedimento, no qual o útero e o ovário em geral são preservados, às vezes demanda equipe multidisciplinar, com ginecologista, coloproctologista, para operar o intestino, urologista, caso haja acometimento urinário. Ou seja, se for necessária, é importante que seja uma cirurgia única”, ressalta a professora da UFMG.
Novas terapias no horizonte
O Brasil hoje se destaca em produção científica sobre endometriose, de acordo com Márcia Carneiro. “A questão é que doenças femininas contam com pouco investimento”, lamenta. Em novembro de 2024, ela assinou um dos seis artigos reunidos pelo periódico Nature sobre os mitos em torno da menstruação. No documento, ela argumenta [em tradução livre]: “Não há dor que seja considerada aceitável ou normal em homens. A dor menstrual afeta milhões em todo o mundo, mas, devido à desigualdade de gênero, muitas vezes as doenças relacionadas à menstruação recebem pouca atenção e financiamento. Por exemplo, a endometriose — que afeta 10% das mulheres em idade reprodutiva — pode ter um efeito devastador nos relacionamentos sociais e sexuais, desenvolvimento de carreira e construção familiar, devido à dor pélvica e infertilidade. No entanto, pode levar anos até que as mulheres obtenham diagnóstico e tratamento. Os atrasos são em parte devido à ausência de um biomarcador da doença, apresentação clínica heterogênea e baixo investimento em pesquisa”.
Mesmo assim, segundo a especialista, nos centros de referência de endometriose do país se desenvolvem estudos com célula-tronco ou nanotecnologia para tratamento, assim como sobre alterações moleculares que favorecem o surgimento da doença. Sem contar as investigações sobre o uso de inteligência artificial para a criação de sistemas capazes de prever essa possibilidade. “Mas tudo no âmbito pré-clínico, ainda incipiente, nada que já possa ser usado na rotina de consultório”, declara.
Em seu artigo na Nature, Márcia Carneiro encerra: “Não existe uma receita mágica. No entanto, as mulheres não devem ter que enfrentar nem a dismenorreia nem qualquer sintoma ou doença relacionada à menstruação, confiando apenas em sua proverbial coragem. […] Educação e conscientização são os primeiros passos cruciais nesta longa e sinuosa estrada”.
Que o Março Amarelo, portanto, seja sempre fonte de informação e estímulo para que as mulheres não adiem a avaliação dos sintomas menstruais, cuidem da saúde reprodutiva e, sobretudo, acreditem: é possível uma vida sem dor.
18 de março de 2025
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