Transparência nos investimentos financeiros e sua consulta médica: o que eles têm em comum?
Imagine agendar uma consulta com um médico e, ao chegar ao seu consultório, descobrir que não há convênio médico nem cobrança pela consulta particular. Parece ótimo, até você perceber que aquele profissional recebe uma comissão por cada remédio, exame ou cirurgia recomendada.
Apesar da competência do profissional, agora a sua confiança naquelas recomendações já não é a mesma. Afinal, por que alguém indicaria um remédio tão caro? Será que vale a pena ouvir uma segunda opinião? Aquela cirurgia é realmente tão urgente?
Esse cenário, embora seja hipotético, ilustra bem a realidade do mercado financeiro. Um mercado com linguajar complexo, baixo nível de transparência e no qual investidores aceitam indicações de gerentes e assessores sem realmente compreendê-las. No entanto, podemos estar diante de um grande ponto de inflexão.
O mercado financeiro brasileiro está prestes a passar por uma transformação significativa com a Resolução nº 179/2023, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
A partir de novembro de 2024, as instituições financeiras serão obrigadas a detalhar, de forma mais clara e transparente, os custos, as taxas e as comissões dos investimentos. Essa mudança promete trazer mais segurança e clareza para os investidores, melhorando a relação entre eles e as instituições que cuidam de seu dinheiro.
A importância da transparência nos investimentos
Transparência é a chave para uma boa relação entre instituições financeiras e investidores. Assim como na compra de um carro, em que é essencial conhecer todas as especificações e custos envolvidos, ao investir o cliente precisa saber exatamente quanto está pagando em taxas e comissões.
A falta de transparência pode funcionar como um “cupim invisível”, corroendo os rendimentos dos investidores sem que eles percebam. A Resolução nº 179/2023 vem justamente para impedir que isso continue acontecendo, permitindo ao investidor tomar decisões informadas sobre onde e como aplicar seu dinheiro.
A Resolução nº 179/2023: transparência e responsabilidade
A Resolução nº 179/2023 da CVM busca corrigir um problema antigo do mercado financeiro: a falta de clareza sobre as comissões e taxas cobradas em produtos de investimento. Antes dessa regra, as instituições financeiras não eram obrigadas a explicar de forma detalhada todos os custos envolvidos nas operações de investimento. Isso gerava uma situação em que muitos investidores não sabiam exatamente o quanto pagavam por esses serviços.
Com a nova norma, as instituições financeiras passam a ter a obrigação de:
- Informar detalhadamente as taxas e comissões: no mesmo ambiente em que o cliente realiza suas operações de investimento, ele poderá visualizar claramente os valores de remuneração da instituição.
- Enviar extratos trimestrais: esses extratos devem detalhar todas as comissões cobradas durante o período, garantindo ao investidor uma visão clara dos custos envolvidos.
Os modelos de investimento e a nova tendência
Atualmente, existem dois grandes modelos de investimento no mercado financeiro:
- Modelo transacional: bancos que oferecem produtos como CDBs, previdência privada e poupança. Esses produtos são geralmente mais simples e menos eficientes. Houve também o surgimento de corretoras que se apresentam como shoppings financeiros e oferecem uma variedade maior de produtos, porém a remuneração é similar à dos bancos, através de comissionamento por transação (em inglês, comission-based).
- Modelo fiduciário: há total alinhamento e transparência entre o cliente e o consultor. Nas palavras de John Bogle, fundador da Vanguard, esse é o modelo “onde uma pessoa não pode servir dois mestres”. Nele o investidor paga uma taxa fixa sobre seu patrimônio financeiro, evitando todo e qualquer conflito de interesse.
Este último modelo, de taxa fixa, é praticado por consultorias e family-offices, inspirado nas melhores práticas de mercados mais desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá. A remuneração é transparente e diretamente ligada ao crescimento do patrimônio do cliente.
Resistência à mudança
Apesar de trazer muitos benefícios aos investidores, a nova regra enfrenta a resistência de algumas instituições financeiras. Acostumadas ao modelo antigo, no qual as comissões não eram sempre explícitas, algumas instituições têm pressionado pela prorrogação na implementação da resolução. No entanto, a CVM manteve sua posição, e a nova regra entrará em vigor em novembro de 2024, conforme o cronograma inicial.
Conclusão: um avanço para a cidadania financeira
A Resolução nº 179/2023 marca um avanço significativo para o mercado financeiro brasileiro. Ao exigir mais transparência das instituições financeiras, a CVM está promovendo uma relação mais justa entre investidores e empresas, permitindo que os clientes tenham maior controle sobre seus investimentos e tomem decisões mais conscientes.
Essa nova regra é um passo importante na construção de uma verdadeira cidadania financeira, em que o investidor tem acesso a todas as informações necessárias para gerir seu patrimônio com confiança e segurança.
30 de setembro de 2024
,Renan Zanella
Sócio-diretor de consultoria da Zanella Wealth e administrador pela USP.